[CL] 00. Empowerment

O brilho fosco na superfície enegrecida de ônix chamou a atenção de Uriel que finalizava seu treinamento naquele fim de tarde. A lebre alada invadiu a biblioteca numa velocidade impressionante, cruzou estantes amadeiradas de livros e realizou percursos de maneira tão veloz que certamente alguém poderia confundi-lo com algum vulto ou aparição sobrenatural. Uma pequena garotinha que dedicava-se em seus estudos etéreos por pouco não deixou o seu grimório com o símbolo da Ordem Primordial cair no chão, tendo que equilibrá-lo em seus dedos para não causar mais barulho.

A lebre observou a dona dos cabelos negros com ingenuidade em sua face, apesar de seus olhos pétreos sinalizarem-na o contrário.

Perigo? Advertência? Emergência?

A criaturinha observou-a como se precisasse de algo — a mulher logo lembrou de seus treinamentos durante a iniciação e soube como deveria lidar com a situação. Puxou um dos pergaminhos na mesa e a criatura conseguiu entrar em contato com ambas as suas patinhas dianteiras na superfície do papiro. Daquele ponto de contato, uma pequena linhagem de mana azul fluiu em linhas muito bem escritas, formando lentamente palavras, frases e estrofes. No topo, havia um remetente e um destinatário, respectivamente: Capitão dos Escudeiros Etillari e Soldado Uriel, respectivamente. O conteúdo da mensagem poderia ser lido pela jovem posteriormente.

”Venho por meio desta anunciar a nova direção para os escudeiros altoguardas. Devido a alguns envolvimentos ilícitos e quebra de morais por nós estabelecidas durante muitos anos dentro do legado que carregamos enquanto família, anuncio a saída de Mivo Gaspari de nossos laços alastrios. A partir dessa decisão, ele não poderá mais ser encontrado e seus soldados estarão sendo guiados aos ideais que verdadeiramente importam — valores que jamais deveriam ter sido esquecidos e muito menos desvirtuados.

Apenas por uma questão moral, considerando os laços construídos ao longo dos anos para com aqueles que admiravam-no, ressaltamos que Mivo atualmente depende apenas da decisão dos Sentençais sobre seu futuro para a redenção e reflexão sobre seus atos.

Como primeiro ato, convocarei um grupo pré-definido de cinco soldados promissores que ajudarão-me numa missão de alto sigilo. Vos que lêem esse conteúdo na mensagem enviada são os selecionados para meu quinteto pessoal — recomendados por superiores que acompanharam-os em seus treinos. Mais detalhes acerca da tarefa a ser exercida serão passados pessoalmente dentro de apenas alguns minutos.

Por favor, sejam pacientes. Espero que sejamos bons companheiros de guarda.”

Passos pesados e um tilintar metálico de armadura chamou atenção de todos da biblioteca para a figura imponente em sua entrada.

O maxilar bem definido e sobrancelhas franzidas eram traços que causaram uma primeira impressão intimidadora. Para além disso, as imagens de águias encrustradas em ouro nas suas largas ombreiras passavam a impressão de que poderiam ganhar vida a qualquer momento devido à forma que olhavam as laterais do altoguarda. Seus passos foram dados com peso, distraindo aqueles imersos em longas leituras e trazendo suas atenções para a aparição marcante do homem que ajustou as penas douradas no centro de seu peitoral, como quem assegura-se de que não há nenhum defeito com seus equipamentos. Talvez não estivesse acostumado com tantos olhares lançados ao mesmo tempo? Ou, então…

Seu par de olhos negros encontrou Uriel na mesa onde encontrava-se. Transpassava algo similar ao olhar da lebre de ônix, tento o mesmo toque pétreo, mas trazendo uma certa sinistrez apenas pelo fato de ser numa imagem humana.

— Creio que esse lugar não seja das melhores influências para seu progresso — sua voz ecoou num tom acima do permitido dentro da biblioteca, contudo, apenas por tratar-se de um capitão altoguarda, os demais não pareceram instigados a corrigí-lo. — Permita-me uma apresentação digna. Sou Etillari de Rházir, seu novo capitão enquanto escudeira. Como deve ter visto no conteúdo da carta… — apontou para o papel debaixo das patinhas dianteiras da lebre que, por sua vez, partiu em retirada tão rapidamente quanto chegou — estou convocando-a para participar de meu quinteto pessoal de soldados. Com sucesso, pode ser um degrau importante no crescimento hierárquico altoguarda.

Ele observou as pessoas que ousavam manterem-se por perto apenas para ouvir aquele diálogo ou devido ao simples fato de continuar seus estudos. De toda forma, não se importou em levar uma mão à espada depositada em sua bainha majestosa banhada em ouro nas costas como quem ressalta um comando de gentileza: não se aproximem. Com aquele ato implícito, os curiosos debandaram-se para andares superiores da biblioteca, enquanto os estudiosos carregaram seus livros para outros pontos do âmbito em que não teriam de lidar com tamanha tensão de atmosfera. Toda a pressão agia como uma tonelada inteira sobre os ombros de Uriel que, mesmo após um longo período de aperfeiçoamento rúnicos, ainda precisava lidar com um acontecimento tão… atípico.

Etillari pediu espaço com súbita educação e sentou-se ao lado de Uriel.

— São tempos difíceis para nós, humanos bem intencionados, mas creio que com a fé dos cinco conseguiremos cruzar essas barreiras com a determinação necessária — sua voz era envolvente, calma e com certa rouquidão. Apesar de demonstrar ser um pouco autoritário, Etillari sabia desenvolver um diálogo de maneira coesa. — Todos os dias precisamos lidar com novas provações, somos apunhalados pelas costas e somos traídos por quem menos esperávamos. — Aquelas últimas palavras soaram com certo peso pessoal.

Ele suspirou profundamente.

— Se você aceitar meu convite, cara Uriel, teremos muito o que conversar sobre um assunto que vem dando dor de cabeça para as autoridades altoguardas. Do contrário… — deu uma pausa enquanto observava-a profundamente nos olhos com suas orbes de ônix — creio que sua amiga, Ilyanna, ficará um pouco infeliz com a oportunidade desperdiçada para ambas. Eu gostaria de dá-la um tempo para pensar, jovem Cliva, mas o momento urge por uma ação que deve ser planejada o quanto antes. Estamos perdendo tempo.

Foi como se as águias presentes na alastina de sua armadura brilhassem com a reação de Uriel. Quase como se, naquele roteiro, essa fosse exatamente a resposta que ele esperava de alguém como a morena. Um sorriso inquieto tomou seus lábios rapidamente e a mulher conseguiu ler ali uma expressão radiante — algo puro e benevolente. O homem ajustou sua postura e retirou um pergaminho de dentro de suas vestimentas.

— Perfeito, soldada Cliva — o papel foi suspenso em direção à mulher, Etillari, naquele gesto, deixou explícito que queria que ela o tomasse. — Como já disse, encare esse como um passo crucial à sua caminhada dentro da Altaguarda.

As demais presenças restantes ao redor pareceram se encolher diante do homem conforme passavam para buscar alguns livros ou pergaminhos. Uriel percebeu que a presença de Etillari causava certo impacto àqueles ao redor, mas contemplando um diálogo com o homem, notou que talvez por debaixo daquela armadura houvesse algo de fato radiante, que ia muito além do brilho de candelabros refletidos pela alastina.

— Prepare-se para a partida, Uriel. O caminho não é tortuoso, mas sim aquilo que não podemos enxergar com facilidade.

O pergaminho encontrava-se lacrado pelo selo da própria Altaguarda.

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